sábado, 15 de março de 2008

O filho de alguém

A mochila, a pressa, o fone de ouvido, os óculos e os passos. Descia a ladeira alheio a tudo, pensando nas tarefas que ficaram para o dia seguinte. A dor de cabeça já deslizava sobre os olhos. Era abrir o portão, subir as escadas: minha cama estaria esperando para encerrar o dia. Peguei a chave, mirei a fechadura. Onde arranjei esse tremor? Quando enfim acertei o buraco, senti um leve toque nas minhas costas. Virei, sobressaltado. Assalto?

Não era assalto, era uma velhinha. Já se dobrava pelo tempo e as roupas já estavam levemente puídas. E os olhos... Aqueles olhos azuis já deviam ser impressionantes quando opacos, mas assim eram surreais: a luz do poste reincidia sobre eles, aumentando assustadoramente o brilho da água. Não, ela não chorava, mas já ensaiava o pranto. Tirei o fone e, ainda trêmulo, arrisquei um “oi” reticente, na medida exata da minha surpresa e encantamento. Ela tentou sorrir, quando respondeu:

- Moço, qual o seu nome? Desculpa moço, o mau jeito. Eu chegando assim, tão de repente. Mas é que você... Por Deus! É que você é a cara do meu filho. Mas meu filho sumiu há tanto tempo... Como pode?

Paralisei: aquilo não poderia estar acontecendo. As lágrimas já desciam lentamente pelo rosto dela. Senti meus olhos queimando também, e a dor de cabeça se acentuando. Desviei meu olhar da senhora, mirei o poste. O clarão diminuiu.

- Gusthavo. Meu nome é Gusthavo...

- Ele tinha a sua idade, quando foi. Imagina você. É Gusthavo, né? Saiu cedinho, foi comprar pão. Antes de ser meio-dia eu já sabia que o tinha perdido. Aquele aperto. “Traz o troco” foi a última coisa que eu disse, moço. Ele não respondeu: só me beijou. Achei estranho, mas gostei. Que menino, Deus! Sempre cheio de surpresas! Mas por aquela...

Ela soluçou. As lágrimas agora corriam rápidas e o pranto, antes tímido, já sacudia todo o seu pequeno corpo. Acho que eu chorava também. Ela continuou expiando as saudades:

- E imagina você, menino, que desde esse dia eu tenho dormido com a porta aberta. Vai que ele volta de madrugada e encontra a porta trancada? E o telefone? Quando toca só pode ser ele: quem mais ligaria pra mim? Engano, moço, sempre me engano. Mas agora... Você me aparece – ela me fitou, incrédula – Como pode? Tão igual. Ele devia ter a sua idade e tinha essa mesma barba rala. Eu não gostava: “muito novo pra isso”. Mas olhando assim, até que fica bonito com esses óculos... Como pode, Deus, tão igual... Esse sorriso! Como é mesmo seu nome, moço?

-É Gusthavo. – murmurei

- Isso! Eduardo, meu Eduardo! Como pode, como pode? É para eu me despedir não é? Você voltou pra dar tchau, né? Você sempre faz isso, Eduardo... Não faz assim com sua mãe não, menino. Como você pode? É pra dar tchau mesmo? Então deixa eu me despedir, eu sou mãe oras. Vem cá! Me dá um abraço?

Fechei os olhos para não me cegar, não me afogar. E eu, que não tinha passado de uma fotografia, memória estática, passei a ser abraço. Apertei-a forte. E assim, por um instante, a mochila, a pressa e a dor de cabeça perderam peso. Só pesava a senhora, o rosto no meu peito:

- É saudade, meu filho... É saudade.

..............................................................................................

Prosa enferrujada.
Mas aprendi no intervalo dos Simpsons: "um conjunto de vícios compõem um estilo", Não Pertube.

Desliga esse PC e vai ler um livro.

7 comentários:

buh . disse...

É, meu caro: o produto final ficou surpreendente. Gosto da sua prosa, ainda que diferente como você disse. Muito, muito bom (como de costume).

=)

Beijos

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Natacha disse...

Esse gusthavo eu não conhecia, quantos moram aí dentro de vc, hein?!

Eu me lembro dessa história, não sei se é ficção, é?

Sempre as velhinhas, sempre elas.
=o*

P.S.: Ai que burraaaaaa, tinha postado sem querer no login da minha amiga ( Amanda), sorry!

Natacha disse...

vim aqui ler mais uma vez porque estou inconformada com a beleza disso.

Lud Nogueira disse...

vc é o único, qe consegue tirar lagrimas de mim, com 'apenas' palavras...


=S

Anônimo disse...

Seu eu disser que chorei vc acredita?!
Posso fazer uam pergunta meio tonta?A velinha existe msm?
Impressionante, fiz uma nova experiencia...li em voz alta agora...me fez viajar mais que o melhor livro que eu jah li...
A parecero, me vende os direitos autorais pra mim poder publicar seus versos em um livro? =D

Posso me arriscar a um conselho?
Nunca pare de escrever...

Bju

Anônimo disse...

emocionante =)
sensível.
incrivel, gu, incrível...

vc me assusta, assim! como que eu nunca havia lido seus textos??
que despedício de tempo, o meu!

daqui a pouco vc já vai ter livros e mais livros publicados e eu lá, sem saber de nada! =P

Impressionante mesmo. Encantador!

beeijo