domingo, 23 de março de 2008

Negro e vermelho

O peito rápido, respiração falhando. Ela mordia os lábios, os dele ou os dela, e não vertia uma palavra. Ou suspiro, ou gemido. Nada. Havia certa hesitação por parte dele: não era bom o suficiente? Não fazia certo? Mas ela sempre o procurava, não? E a voz dela o chamando lhe dissipava todas as dúvidas. A voz dela dizendo que ele fora o primeiro e o último lhe confortava. Mas então silêncio cortava. Os corpos e os movimentos já eram um. Então porque os olhos tão cerrados? Ele, tímido e intimidado pelo mistério dela não ousava romper o ritual. Quedava em silêncio também.

Foi na última vez que ela falou: ele estava febril, aflito. E ela, ainda fechando os olhos e mordendo os lábios. Ele, em ligeiro delírio, queria gritar, queria aprovação, se sentir presente. Mas, ao olhá-la, se assustava. Não poderia lhe ferir os ouvidos? Todo o todo corpo dela era dele mas não os ouvidos, nem os olhos, nem a voz. Aumentou o ritmo, quase inconscientemente. Febre, suor. Veio o sussurro:

-Mais devagar...

Ele parou, por um instante, de surpresa. E retornou incrédulo, aos poucos. Ainda mais febril. Os lábios, os olhos: pequeno sorriso fugaz que brotava nos rosto. Ela não sorria pra ele, sorria pra si. Apenas deixava escapar uma satisfação de relance, e o reflexo já se fora entre os dentes. Era por isso que cerrava os olhos? Para guardar só para si o que ele simplesmente ajudara a despertar?
Terminaram em um abraço. Ela abriu os olhos, quase perdida. Olhava ao redor sobressaltada, como que pega de surpresa, o vermelho já subindo pelo rosto. Ele não entendia, procurou seus olhos. O encontro a acalmou. Ela sorriu, de novo serena. Juras e agradecimentos. Ele, sem entender procurava resposta nos olhos dela. Viu-se refletido. Compreendeu.
Ela não o mirava. Via apenas os olhos, esses espelhos. Via a quase garotinha transformada nos olhos dele.

Via-se mulher, em negro e vermelho.

sábado, 15 de março de 2008

O filho de alguém

A mochila, a pressa, o fone de ouvido, os óculos e os passos. Descia a ladeira alheio a tudo, pensando nas tarefas que ficaram para o dia seguinte. A dor de cabeça já deslizava sobre os olhos. Era abrir o portão, subir as escadas: minha cama estaria esperando para encerrar o dia. Peguei a chave, mirei a fechadura. Onde arranjei esse tremor? Quando enfim acertei o buraco, senti um leve toque nas minhas costas. Virei, sobressaltado. Assalto?

Não era assalto, era uma velhinha. Já se dobrava pelo tempo e as roupas já estavam levemente puídas. E os olhos... Aqueles olhos azuis já deviam ser impressionantes quando opacos, mas assim eram surreais: a luz do poste reincidia sobre eles, aumentando assustadoramente o brilho da água. Não, ela não chorava, mas já ensaiava o pranto. Tirei o fone e, ainda trêmulo, arrisquei um “oi” reticente, na medida exata da minha surpresa e encantamento. Ela tentou sorrir, quando respondeu:

- Moço, qual o seu nome? Desculpa moço, o mau jeito. Eu chegando assim, tão de repente. Mas é que você... Por Deus! É que você é a cara do meu filho. Mas meu filho sumiu há tanto tempo... Como pode?

Paralisei: aquilo não poderia estar acontecendo. As lágrimas já desciam lentamente pelo rosto dela. Senti meus olhos queimando também, e a dor de cabeça se acentuando. Desviei meu olhar da senhora, mirei o poste. O clarão diminuiu.

- Gusthavo. Meu nome é Gusthavo...

- Ele tinha a sua idade, quando foi. Imagina você. É Gusthavo, né? Saiu cedinho, foi comprar pão. Antes de ser meio-dia eu já sabia que o tinha perdido. Aquele aperto. “Traz o troco” foi a última coisa que eu disse, moço. Ele não respondeu: só me beijou. Achei estranho, mas gostei. Que menino, Deus! Sempre cheio de surpresas! Mas por aquela...

Ela soluçou. As lágrimas agora corriam rápidas e o pranto, antes tímido, já sacudia todo o seu pequeno corpo. Acho que eu chorava também. Ela continuou expiando as saudades:

- E imagina você, menino, que desde esse dia eu tenho dormido com a porta aberta. Vai que ele volta de madrugada e encontra a porta trancada? E o telefone? Quando toca só pode ser ele: quem mais ligaria pra mim? Engano, moço, sempre me engano. Mas agora... Você me aparece – ela me fitou, incrédula – Como pode? Tão igual. Ele devia ter a sua idade e tinha essa mesma barba rala. Eu não gostava: “muito novo pra isso”. Mas olhando assim, até que fica bonito com esses óculos... Como pode, Deus, tão igual... Esse sorriso! Como é mesmo seu nome, moço?

-É Gusthavo. – murmurei

- Isso! Eduardo, meu Eduardo! Como pode, como pode? É para eu me despedir não é? Você voltou pra dar tchau, né? Você sempre faz isso, Eduardo... Não faz assim com sua mãe não, menino. Como você pode? É pra dar tchau mesmo? Então deixa eu me despedir, eu sou mãe oras. Vem cá! Me dá um abraço?

Fechei os olhos para não me cegar, não me afogar. E eu, que não tinha passado de uma fotografia, memória estática, passei a ser abraço. Apertei-a forte. E assim, por um instante, a mochila, a pressa e a dor de cabeça perderam peso. Só pesava a senhora, o rosto no meu peito:

- É saudade, meu filho... É saudade.

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Prosa enferrujada.
Mas aprendi no intervalo dos Simpsons: "um conjunto de vícios compõem um estilo", Não Pertube.

Desliga esse PC e vai ler um livro.

sábado, 1 de março de 2008

Acordei, era ontem, e não me importei


Os meus olhos desfocados
Excesso de realidade
O corpo ainda estático
Vendo vertigem em vontade

Memórias voltando em vórtice
Pés e chão a se encontrar
Remorsos que se contorcem
No sonho súbito de acordar

Enquanto o sono se consome
O travesseiro a sussurrar
Durma agora, insone ontem

No sonho infame de acordar